Coisas estranhas que eu chamo de amor:

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Docinho. Salgadinho. Queijo. Pão de Queijo. Vinho. Mousse de chocolate. Em tempos de dietas fitness, peço permissão para ser um pouquinho ignorante. Semana passada descobri que o meu jeito de mostrar que eu gosto de alguém inclui açúcar, conservante, se possível, graduação alcoolica.

Jamais convidei alguém para vir a minha casa e tomar sopa. Comer salada, se e somente se incluir presunto parma, queijo gorgonzola e nozes carameladas. Neste caso, podemos dizer, o papel do alface é apenas figurativo. Se tivermos muito em comum, vamos terminar a primeira garrafa de vinho, talvez eu abra a segunda. Na manhã seguinte, é possível que eu acorde com dor de cabeça, mas as chances de arrependimento são mínimas.

Na minha casa, amor é uma mesa cheia. Minha mãe faz bolos quando tem visita. Eu fico feliz com a cozinha quente, o fogão aceso e um menu que sempre considera convidados a mais só pra ter certeza de que não vai faltar. Nos sábados, minha vida tem arroz saindo do forno, sobremesa e refrigerante.

Sempre foi assim? Não. Quando eu era pequena, refrigerante era liberado só no final de semana e todos os sucos eram naturais. No recreio, minha lancheira era feita em casa e o resultado não foi lá o esperado: eu cresci vendo meus coleguinhas tomando suco de caixinha e comendo bolacha recheada, desejando que o meu lanche fosse como o deles.

Hoje em dia eu como de tudo, mas vim aqui confessar o meu amor pelo que se condena. Dói meu coração quando vejo alguém julgando um algodão doce. É só açúcar? Olhando pelo lado dos ingredientes, sim. Pelo lado da experiência, eu considero mais que isso.

Algodão doce é o mais próximo que eu consigo imaginar de uma nuvem e é uma sensação mágica sentir o fio derretendo na boca. Eu lembro de comer algodão doce na praia e ver as bordas ficando molhadas com o vento. Lembro da frustração de quando o palito desgrudava do algodão, mas até disso eu gosto. Vejo gente chamando de lixo o que eu sempre considerei diversão. Entendo o ponto de vista, mas não deixo de achar ofensivo. Não é porque uma comida não tem valor nutricional que ela não tem valor nenhum.

Hoje pensa-se duas vezes antes de oferecer qualquer coisa para uma criança e eu vejo que as mães andam cada vez mais preocupadas. Admiro o empenho e cuidado em selecionar o que é mais sustentável e orgânico. Não quero de maneira nenhuma levantar a bandeira do fast-food ou substituir o trabalho de educar pela desculpa preguiçosa do que é mais conveniente. Queria apenas alertá-las, baseada na minha própria experiência. É possível que a aversão a tudo que não é saudável nutra esse amor invertido pelo que não está ao alcance. Vale para os meninos populares da escola e para Sunday do McDonalds.

Tem coisas que não se explica.

Se for pra amar, que eu ame mais.

Se for pra amar, que eu ame mais.

Que seja eu a mais apaixonada, que seja eu a morrer de raiva,

que seja eu a ficar no débito.

Porque amor, pra mim, é perder as contas.

É dar mais do que se tem pra dar.

Quer o meu dia inteiro? Pega.

Quer usar meu carro? É teu.

Eu não fui feita pra mesquinharias.

Amor, pra mim, só é grande quando se já repartiu todos os sonhos,

dividiu todos os planos, quando já se entregou a senha e a chave de casa.

Amor, pra mim, é das coisas imensas.

Dos oceanos, desejos, constelações e galáxias.

Não vejo graça em dosar apoio, em poupar presença,

em guardar carinho.

Deixo para as estatísticas todas as casas decimais.

Não sei amar só um pouco, mas existe, claro, um limite.

Pra me proteger dos que pisam no meu castelo

e depois tentam me convencer que sempre foi só areia.

Para me defender dos que me cobram racionalidade

quando eu me apaixonei por todos os bens que não se declara.

Dos que esperam que eu seja imparcial quando ficou claro,

desde o primeiro momento, que o meu lado é o teu.

Eu sei que passou do limite quando todo esse amor vira falta,

quando insegura eu começo a cobrar de volta

o amor que eu dei de graça.

Sei que passou do limite quando começa a soar desperdício

qualquer esforço pra ficar mais perto.

As promessas passam do prazo. As palavras perdem o crédito.

Sei que passou do limite quando fico carente do que mais me sobra.

Mãe

Já que “Eu te amo” nunca é suficiente, tentei ser mais específica:

Mãe, para mim, era uma porta aberta no meio da madrugada, onde eu me escondia nas noites de pesadelo. Era um beijo de boa noite que às vezes demorava, mas sempre vinha. Era a voz que me contava aventuras quando faltava luz e que consolava meus joelhos ralados. Mãe era o guarda-sol pelo qual eu me guiava nos dias de praia cheia e chá de limão com mel nos dias de resfriado. Lembro de sentar na pia do banheiro para ela pintar minhas bochechas nas festas juninas e de procurar o seu rosto nas arquibancadas no meio das apresentações do colégio.

Eu quis pintar o cabelo, ela me ajudou. Eu quis morrer de amor, ela me acudiu. Eu quis mudar de cidade, mudar de país, mudar de carreira, ela disse vai. Mãe é pra onde corro pra comemorar minhas vitórias e eu volto quando eu perco as esperanças. É a conversa que alivia a minha culpa e a minha dor e cabeça. Mãe é onde eu me sinto mais compreendida e amada. Mãe é a metade que eu tenho fora de de mim.

Sobre o que fica:

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Meu irmão perguntou qual era a melhor lembrança da minha mãe. Passei por Natais, aniversários, dia das crianças e, embora eu me recorde com muito carinho dessas datas, sei que o que mais me marcou não está lá.

A primeira imagem que me veio na cabeça foi uma explosão de cacos de vidro. Eu tinha uns oito anos e estávamos na casa de praia. Os copos ficavam em cima da geladeira, alta demais pra mim. Mesmo cansada de saber que eu deveria pedir ajuda, tentei pegá-los sozinha. Não consegui. A bandeja caiu inteira em cima de mim, quebrando 12 copos simultaneamente. Ao ouvir o barulho, minha mãe veio correndo, checou meu rosto, meus braços, minhas pernas. Eu esperava uma bronca, mas ela me abraçou forte e feliz. Acho que foi ali que eu entendi que eu era amada independente de “se”.

Minha segunda memória vem da mesma época. Estávamos no carro, indo para a escola. Eu estava chorando porque havia esquecido a tesoura. Íamos fazer o cartão de dia das mães e as professoras tinham avisado, bem enfaticamente,  que quem não levasse o material ficaria sem nada. Minha mãe, ao entender meu desespero, foi firme e clara: “Você vai parar de chorar e explicar para a professora que você esqueceu. Ela vai te emprestar. Isso é só uma tesoura”. Até hoje, lembrar desse “só” me ajuda a redimensionar o drama e sofrer um pouco menos pelo que dá pra resolver.

A terceira cena vem da adolescência, não muito fácil para mim. Na cidade onde eu morava o corpo era muito importante e eu vivia quebrando a dieta. Quase todas as minhas amigas já tinham feito lipoaspiração e agora eu queria uma também. “Ou eu mudo (fisicamente), ou eu me mudo” – usei uma frase de efeito na tentativa de persuadi-la. “Então te muda, minha filha”, respondeu sem dó, como quem prefere me ver longe a me ver me comparando.

O que eu levo desses três exemplos é que a gente nunca sabe o que fica. É impossível prever como vão nos lembrar daqui a uns anos. Muito provavelmente, as experiências mais vivas não serão as mais alegres, mas as mais transformadoras.

Eu moro do teu lado.

Photo by Orlova Maria on Unsplash

Vi os teus calcanhares na chuva, deslizando fora da sandália, e achei engraçado. Admirei, entretanto, a firmeza do teu andar debaixo d’água, como quem resiste, resignado. Eu, com a camisa molhada sobre a cabeça, já havia deixado a dignidade. Como se não bastasse, falhei em desviar de algumas poças. Meus pés, que antes esperavam por uma noite glamourosa, anseiam simplesmente por meias limpas e a nossa casa.

Casa. Eu escrevo a palavra e logo desconfio que este seja o motivo que pelo qual tenho andado melancólica ultimamente. É possível que eu sinta uma saudade antecipada desse apartamento que não será mais nosso. Eu não gosto tanto assim dessa cidade, mas eu gosto daqui. Eu amo abrir essa porta, eu amo as flores altas que eu vejo no caminho, eu amo a claridade que chega na sala de manhã enquanto eu faço o café. Tudo aqui me lembra nós. Me agrada pensar que, no nosso caso, a coragem veio antes da certeza e que conseguimos nos divertir com tudo o que não foi perfeito até agora.

Antes de viajar, eu não poderia entender direito o que significava ser estrangeiro. Estrangeiro é alguém que sai de um país, mas não chega no outro. A gente fica na borda, um pé aqui outro lá, querendo acompanhar tudo como alguém de carne e osso, sentindo sempre que a vida nos lembra que esta fantasia digital ainda não é suficiente. Estrangeiro é quem calcula o fuso horário antes de fazer a ligação e depois desiste pelo inconveniente. Não faltam meios de comunicar, o que faltam são assuntos que sirvam como ponte. Quando a gente vem pra fora é que percebe como as nossas conexões são delicadas. E só nós sabemos o nosso medo de perdê-las.

É fato: o meu avião aterrissou, mas às vezes tenho a impressão de partes de nós continuam suspensas. A barreira principal não é a língua, mas o passado em comum que nós não temos. Divido com os brasileiros um patrimônio que não precisa ser explicado. As expressões, os sotaques, as receitas que eu conheço, a vida amorosa dos artistas, os sucessos que tocavam na rádio quando a gente era criança. Carregamos como bandeira essa tendência à felicidade, um carnaval interior que quase ninguém entende.

Eu não poderia imaginar antes de vir, mas o processo de chegar é demorado. Vamos tateando, descobrindo, experimentando, até conseguir encontrar o que seja nosso. Quando eu cheguei, eu te reconheci. Hoje, eu tenho como casa esse lado da cama, a metade direita do armário, os porta-retratos na estante e as gavetas de que me apossei. Casa, pra mim, é a mão que você apoia sobre as minhas costas de madrugada, os lençóis que escolhemos juntos e os planos que nos acompanham.

Olhando pros teus pés na chuva eu me vejo por dentro. Minha história contigo é o país que nós fizemos.

 

O amor é raro.

Photo by Xiaolong Wong on Unsplash

Você me pergunta por que eu não tenho namorado como quem tenta descobrir o meu defeito. Eu digo que não sou tão fácil, como quem responde “perfeccionista” na entrevista do RH. Não é mentira, mas também não é por isso. Poderia colocar a culpa nos homens e dizer que é difícil se comprometer. Poderia colocar a culpa “nos tempos” e dizer que é difícil admirar. Poderia fazer que nem aquela jornalista que escreveu “se você está sozinha é porque você é chata” e ficar me redimindo pelas minhas neuroses, mas nada disso seria sincero.

O que eu tenho pensado ultimamente e tem me trazido alguma calma é que o amor é muito específico. Não é mesmo fácil encontrar. Aparência, interesses comuns e vida profissional são critérios genéricos. Se não fossem, a plataforma do amor seria o Linkedin.

Não é assim que funciona. Pelo menos pra mim. Sempre estranhei essas pessoas que conseguem emendar namoros. Sai um, entra outro e fica tudo bem. Antes achava que tinham muita sorte. Hoje penso que são mais flexíveis. Talvez valorizem mais a companhia do que a pessoa. Gostem da estabilidade de ter uma programação. Adaptam-se melhor ao outro, enquanto eu me prendo a detalhes.

Apaixonante pra mim é o cara que trata bem o garçom. Que me chama de um jeito fofo. Que tem pensamentos bonitos. Que nunca tenta tirar vantagem. Que consegue desenrolar uma conversa agradável numa festa cheia de desconhecidos. Pode parecer loucura, mas para mim a paixão está intimamente ligada ao tom de voz e à qualidade da playlist. Gosto de quem me olha com inteligência, de quem me abraça com vontade, de quem não se expõe demais.

Toda vez que eu vejo um casal feliz, imagino que eles sejam resultado de algum alinhamento cósmico super complicado. Se já é difícil amar alguém, imagina amar alguém que te ama de volta. Que também valoriza em você o que mais ninguém percebe. Considero uma missão fazer-se insubstituível num mundo em que ninguém mais levanta a cabeça, tão entretidos que estamos com o visor do telefone.

Como disse uma amiga, a questão não é ter um namorado: é ter o namorado certo. Enquanto ele não chega, eu trabalho, saio, vou à academia. Às vezes eu surto, mas não há muito o que eu possa fazer. Preciso ter paciência para esperar o que mereço. Estou sozinha e não é culpa minha. O amor é raro.