Pela fresta da janela semi aberta, passavam o vento e o silêncio das noites de inverno. Alguma luminosidade se dissolvia no escuro do quarto, de modo que viam-se ligeiramente azuis.
Month / agosto 2009
Sarah
e que todo “não” manche o meu vestido,
até quando eu duvido do que é certo,
E se a minha carruagem já tiver partido…
Eu ainda sou uma princesa.
Com meus sonhos, flutuando em mim mesma.
Tecendo a minha renda com retalhos,
procurando algum brilhante na tristeza.
Querendo um final de purpurina
pra essa tarde, pra essa história, pra essa vida.
**Sarah significa princesa. Escrevi para mim.
Que exibida, né? 😉
Uvas verdes
Estávamos eu e a mosca. Tinha sentado na poltrona da sala de espera do aeroporto de Belo Horizonte havia quase duas horas. Desde então, a mosca me acompanhava. Revezava entre o braço da cadeira e o meu. Tentei espantá-la, mas foi inútil. Mesmo que ela fosse muito menos ágil que um mosquito, eu nunca teria prazer em esmagá-la com a mão. Visto que não conhecia ninguém aqui, a mosca até me distraía.
Enquanto me demorava nos detalhes das asas, um homem se aproximou. Barba por fazer, alto, magro, lindo como qualquer coisa improvisada. Meus olhos esqueceram a mosca, passaram a admirar a paisagem que milagrosamente sentou-se ao meu lado.
-Está ocupado? –perguntou.
– Não, eu estou sozinha – respondi, com um sorriso maior do que devia.
Em frações de segundos já havia me arrependido de ter aberto a boca. O cara me perguntou se podia sentar e eu já adiantei que estava solteira. Tive vontade de morrer atropelada por um avião. Achei que fosse melhor ir embora, mas reconsiderei. Se a conversa fluísse bem, talvez ele nem percebesse que eu estava mesmo tão carente. Ainda que morrendo de vergonha, resolvi ficar onde estava. Disfarcei meu nervosismo olhando a mosca.
-Esses olhões são incríveis… ele comentou, com a cabeça virada na horizontal.
– São mesmo…
-Você sabia que as moscas podem enxergar até quatro mil ângulos ao mesmo tempo?
-Sério? – questionei com interesse vago. Na verdade estava muito ocupada admirando o angulo horizontal da cabeça dele, que deixava o cabelo cair na testa.
– É porque elas tem milhares de olhos… disse fascinado.
– Você é biólogo?
-Sou.
– Que legal. Sempre achei legal conhecer bem a natureza.
-É uma profissão maravilhosa, mas eu sou suspeito para falar.
Constatei que estava mesmo desesperada. Em sete frases eu já imaginava nós dois levando nossos filhos para o Zoológico. Já escolhia o nome do nosso labradorzinho quando o telefone dele tocou.
-Alô, Alô, não estou escutando… alô… – repetia.
-Você quer tentar do meu? – ofereci, prestativa.
-O seu também é rádio?
-É. Pode usar à vontade…
-Muito obrigada. Estou mesmo preocupado. É que a minha esposa é modelo. Ela viajou para França ontem e até agora não deu notícia. Vi no jornal que está chovendo muito. Ela deve ter acabado de chegar – explicou bem explicado.
Sorri amarelo. Levantei quando escutei o “oi amor”. Deixei o telefone com ele e fui até o bar. Pedi vodka e gelo. Duas. Uma pra mim, outra pra mosca.
Ainda
Comprei um porta retrato para dar a uma amiga de Fortaleza. Ainda não mandei.
Gravei depoimentos de gente de 13 países para fazer um mini documentário. Ainda não editei.
Na minha estante, acumulam-se os livros que eu ainda não li.
É assim que eu conto as coisas para mim, com um ainda embutido em cada frase. Quero ter a impressão de que é questão de tempo. O ainda suaviza o não, me permite pensar que a negação é temporária. O ainda exprime a possibilidade de mudar a sentença. Essa chance de transformação é o meu aval para adiar mais e mais.
Mas iminência do movimento é uma ilusão sintática.Não há nenhuma garantia de realização. Bruna não recebeu o presente, eu não terminei o filme e comprar livros não me faz uma grande leitora. É melhor encarar a verdade: o ainda só existe na frase e na minha cabeça. Na prática, ou é sim, ou é não.
O cabelo das mulheres
Very Old School
Que academia Brasileira de Letras… Imortais mesmo são os atores da Globo. Entra novela, sai novela, estão sempre com a mesma idade. Por quanto tempo mais eu terei que que ligar a televisão e encontrar astros como Antônio Fagundes (o poderoso), Victor Fasano (o sofisticado), Tony Ramos (o bom partido) e Humberto Martins (o pegador)?
Feitiço
Minha casa já foi um engenho de farinha. Antigamente, o lugar onde estou agora era habitado por bois e descendentes de açorianos que vieram tentar a sorte no Brasil. Não sei se morreu algum escravo por aqui. De noite, as portas de madeira estralam sozinhas. Ruídos estranhos percorrem a casa e eu prefiro nao imaginar o que pode ter acontecido aqui na época em que isso era apenas lagoa e escuridão. Ou melhor, era a lagoa, a escuridão e a magia de que tanto falam.
Falta
Aconteceu há algum tempo, no interior do Rio Grande do Sul.
Acordou. Olhou-se. Desceu. Pão e queijo. Enquanto esperava a luz da sanduicheira acender, folheou o jornal que encontrou sobre a mesa. Não que que tivesse o hábito de ler os obtuários, mas um sobrenome conhecido chamou a atenção. A nota informava que Ana Cristina Siqueira dos Santos, 42 anos, descansava em paz depois de oito meses lutando contra o câncer. “Não, não. Não pode ser.”
Esqueceu a sanduicheira ligada e foi acordar o marido.
-Amor, tu te lembras daquela minha amiga, morena, baixinha, que era minha vizinha quando a gente se conheceu?
-Uma que ria meio alto?
-Isso.
-Que que tem?
-Eu acho que ela morreu.
-Morreu?
-O nome está no jornal. “Ana Cristina Siqueira dos Santos”. Foi câncer, parece. Tão nova…
– Que pena. Ela tinha filhos?
-Não sei. Faz uns quinze anos que a gente não se vê… A última vez foi no casamento da Marininha, irmã do Nelson, lembra?
-Lembro. Faz 15 anos já?
-Faz. Faz 15 anos. A gente ficou sem se falar 15 anos. E agora ela morreu. Minha amiguinha da escola, depois companheira dos cinemas, das festinhas. A melhor amiga que eu já tive e eu fiquei todos esses anos sem ligar no natal… Eu nem tenho o telefone dela….
-Calma amor, não fica assim. Vem aqui…calma, Clara… calma. Por que você não liga para a Marininha e descobre onde vai ser o velório?
-É. Eu vou no velório. E vou fazer a coroa de flores mais linda que alguém já viu. Passei a vida fazendo coroa pros morto dos outros…
-Isso amor. Não chora. Faz uma coroa bem linda e a gente leva lá pra ela. Hoje é terça, a gente fecha a floricultura, não tem problema.
Lavou o rosto. Desceu. A floricultura ficava no térreo. Abriu a geladeira. Pegou só o que estivesse lindo e novo. “Eu vou fazer bem vermelho, que é como ela gostava”. Juntou as rosas, tirou os espinhos e foi montando tudo com pesar e saudade. Lembrou das vezes que saíram escondidas, de quando brigaram porque gostavam do mesmo menino, lembrou de como ela achava escandalosa aquela risada e não se conformou em perceber a falta só agora.
“Daqui a pouco a Aninha vai apodrecer como essas rosas”, pensou ao jogar fora a caixa de flores velhas.
Quando a coroa ficou pronta, ligou para Marininha. Marina tinha se mudado para São Paulo havia sete anos e a última notícia que tinha era que a Ana Cristina estava morando em São Francisco. São Francisco ficava a uma hora e meia dali. O telefone ela não tinha.
Entraram na camionete e foram mesmo assim. Fizeram uma viagem silenciosa. Clara não sabia o que ia encontrar. O último enterro a que tinha ido tinha sido o da sua avó, mas era bem diferente. Morreu em casa, dormindo, velhinha. “Tomara que ela não tenha filho pequeno”, pensava enquanto se distraia com os barulhos dos pedras da estrada.
Chegaram. Os números de metal pendurados no portão de madeira verde indicavam que estavam na casa certa. Buzinaram. Ninguém. Buzinaram de novo. Um homem veio atendê-los.
-É aqui que mora a Ana Cristina?
-Sim.
-Nós viemos trazer umas flores…
Antes que terminasse de explicar, Ana aparece na porta. Clara saiu correndo e abraçou a amiga. Um abraço forte, como se quisesse se certificar de que estava mesmo ali. Clara chorou de alívio, chorou pelos quinze anos que passaram longe, chorou de agradecida por poder mais uma vez abraçar a amiga quente, gorda, viva. “Eu achei que tu tivesse morrido, e eu te amo tanto, tanto…”, soluçou. Ao entender, os olhos de Ana molharam também. Viu a coroa no carro, deu graças a Deus por estar ali e por ter a certeza de que era tão querida.
De fato, o nome era o mesmo, mas era outra pessoa. Refeita, Clara desculpou-se pelo incômodo.” Eu teria feito o mesmo.” Era verdade.
Ana insistiu que eles ficassem para um café. Sentaram, conversaram, riram como antes. Aquela tarde de terça, fadada a ser triste e sombria, milagrosamente se transformara na melhor tarde de terça dos últimos anos só porque as duas existiam. Trocaram telefones e prometeram se falar mais.
Clara voltou para casa contente, como se ela mesma tivesse nascido de novo. Na manhã seguinte e em todas as outras, sempre que abre a floricultura, ela se sente premiada por “só fazer coroa pros morto dos outros…”